terça-feira, 26 de agosto de 2014

Sobre baldes de gelo e corações mornos

   Via DCM-
 A Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA) é uma doença grave e rara. Em média, um ou dois casos são diagnosticados por ano em cada 100.000 habitantes.
    Como muitas outras doenças graves e raras, quase ninguém sabe do que se trata. Ou não sabia, até que celebridades, subcelebridades, políticos, anônimos e wannabes começaram a jogar baldes com água e gelo sobre si, como propôs uma ONG dos Estados Unidos.
    Muitas outras ONGs em várias partes do mundo passaram então a receber doações mais fartas para ajudar os pacientes com ELA. Celebridades menos confiáveis chegaram a divulgar o comprovante de doação, como se fossem obrigadas pelas circunstâncias a fazer isso. Caso contrário, seriam consideradas insensíveis e más.
    Por isso é bem provável que nos próximos meses surjam diversas tentativas de ser a nova campanha do balde com gelo. ONGs contratarão publicitários especialistas em novas mídias e em tocar o coração morno das massas com histórias tristes e filhotes.
    Famosos e anônimos tentarão outra vez mostrar o quão solidário eles podem ser, quando impulsionados pela onda do momento, pela empatia ou por autopromoção.
    O movimento das ondas, contudo, parece sempre morrer na praia. E é provável que ano que vem poucas pessoas ainda se lembrem de fazer doações para campanhas do ano passado.
    Parece também incentivar uma solidariedade sazonal, como que alguém acumulando pontinhos de bondade vez ou outra, a serem trocados por benefícios futuros nesse mundo ou além dele.
    A vontade de ajudar aqueles que sofrem, porém, é algo intrínseco ao ser humano, a um ser social que depende dos outros para sobreviver – e um leão ou um tigre em geral não demonstram tanta tendência à empatia.
    O problema é deixar que esse impulso fique a mercê de publicitários criativos, ONGs de fundo de quintal, igrejas de empresários que não pagam impostos ou emissoras de TV que sonegam.
    No Brasil, o SUS fornece gratuitamente os remédios para o tratamento da ELA – que é uma doença ainda incurável – e segundo a presidente da Associação Pró-cura da ELA, Sandra Mota, as maiores dificuldades encontradas pelos pacientes são devido à falta de médicos especializados em doenças raras.
    Já a chefe do Laboratório Nacional de Células-Tronco Embrionárias da Universidade de São Paulo (USP), Lygia Pereira, afirma que, em relação às pesquisas, o problema também não é tanto a falta de dinheiro, mas a lentidão e a burocracia para os cientistas conseguirem os produtos que necessitam.
    Essas questões esbarram em aspectos religiosos, culturais e também no fato de a indústria farmacêutica investir muito pouco em doenças raras ou que afetem apenas a países pobres, tendo em vista o baixo retorno financeiro.
    Ainda assim é evidente que campanhas como a do balde de gelo podem ajudar muitas pessoas e mais evidente ainda é que doações esporádicas não são suficientes. Que impostos e leis podem oferecer garantias muito maiores de um tratamento a longo prazo a esses pacientes.
    Vale lembrar que a campanha do balde surgiu nos Estados Unidos, país cujo sistema público e universal de saúde é fonte de controvérsias assustadoras. Há muitos por lá que defendem que o pobre receba atendimento, mas contraia uma dívida. Se for imigrante, que retorne ao país onde nasceu ou morra.
    No Brasil, porém, já tratamos de graça a maioria das doenças e temos a saúde pública garantida pela Constituição. É consenso que o SUS ainda precisa melhorar muito, mas são poucos os que defendem que ele acabe ou deixe de atender alguém gratuitamente.
    Os caminhos para melhorá-lo devem estar então em todas as propostas de governo nessas eleições. Planos mirabolantes, milagrosos, possíveis ou promessas vazias, filhotes e lágrimas.
   Por isso, mais importante do que jogar um balde de água na cabeça e fazer vez ou outra uma doação, é se engajar politicamente, espiritualmente. Não deixar que o impulso à empatia e à solidariedade se torne algo morno, passivo, dependente de ondas que o arrastem.
    É exercitar a própria ética, e impedir que pequenas doações sirvam para desencargos de consciências carregadas pela culpa e pela sensação de dever.
    A solidariedade não é um dever, mas um impulso natural a espécies que vivem em sociedades. É o caminho para a harmonia nessas sociedades. Um mecanismo evolutivo ou transcendental em que Darwin pode concordar com as religiões: a sensação prazerosa ao sermos solidários é a base de muitas experiências, tanto científicas quanto espirituais.
    Que banhos gelados e comprovantes de doações ou dízimos nunca pareçam suficientes.
Sobre o Autor
Leonardo Mendes é catarinense, jornalista e escreve no blog Van Filosofia. http://filosofiavan.wordpress.com
Foto: Bill Gates no desafio- reprodução DCM

2 comentários:

  1. Oxalá as ajudas fossem na mesma proporção que essa agitação social, no mais, seria apenas mais um desses fenômenos de comportamento coletivizado igual aos passinhos do thriller após a morte de Michal Jackson.

    Paz

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    Respostas
    1. Oi Ezequiel, a paz, obrigada pela visita, o que tenho visto de pessoas comuns aderindo ao banho, e postando nas redes impressiona, e concordo, quem dera viessem as ajudas no mesmo ritmo.Grande abraço.

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